Como vocês sabem, adoro escrever um conto de Natal a cada ano. Este ano não foi diferente. Comecei na semana passada, mas os compromissos de dezembro, o Facebook e o meu vício em paciência foram me atrasando, e só ontem coloquei o ponto final na história. Quando comecei a escrever, os dias eram de sol, no entanto. E espero que nosso Natal não seja chuvoso, nem triste. E que todos tenham, em seus corações, um pouco deste espírito natalino que cada vez é mais difícil de encontrar. Paz na Terra entre os seres de boa vontade!
Aqui vai ele, espero que gostem!
Aqui vai ele, espero que gostem!
Wet Christmas - Natal 2013
Lúcia Bettencourt
A rua inquieta, tomada pelos
carros impacientes, atrasados reluzia molhada. Vista da janela do apartamento,
assemelhava-se a uma fileira de luzes natalinas, piscando: Vermelho, amarelo,
verde, vermelho, vermelho…
Um ritmo se impunha. Os carros
se movimentavam, depois paravam outra vez, quase no mesmo lugar. Buzinas
diziam, em código, frases desaforadas. Vermelho, vermelho…
Olhos, luzes, corações, vida,
tudo pulsava no mesmo ritmo. Os sinais mudavam suas cores, os carros não saíam
do lugar. Outra vez as buzinas gritavam impropérios,: alguns longos, mais
altos; outros roucos, cansados. Vermelho, vermelho…
As luzes de uma sirene
giravam, esperançosas, mas ela reprimia seu canto. Apenas vez por outra, quando
o sinal mudava de cor, ela ensaiava um gemido. Alguns carros tentaram abrir caminho,
mas o espaço entre eles não permitiu manobras, e permaneceram todos nos mesmos
lugares, apenas um pouco mais desalinhados. Vermelho, vermelho…
A chuva voltou a cair, violenta.
Os pingos ressoavam nos tetos e davam urgência ao ritmo dos alertas e sinais. A
água começou a subir, os corações aceleraram. Vermelho, vermelho…
Com a rua metamorfoseada em
rio, as calçadas sumidas sob ondas sujas, a esperança de chegar em casa a tempo
da ceia começou a falhar. Um relâmpago anunciou a queda de um raio e, logo em
seguida, uma trovoada longa estremeceu o ar. Num estertor, as buzinas todas
clamaram, mas foram engolidas pelo novo trovão, irado, acompanhando os raios
que caíam próximos. Vermelho, vermelho…
Vista da janela, a rua se
apagava debaixo da cortina d’água. Ali, dentro do apartamento, havia um perfume
de coisas gostosas. A mesa estava posta com capricho e fartura. Os pés da dona
da casa caminhavam no seco, e os saltos clicavam no ritmo da impaciência de
quem percebe que os convidados irão se atrasar.Vermelho, vermelho…
A árvore de Natal piscava suas
luzes. De repente, mais um clarão seguido por um formidável trovão que pareceu
estilhaçar a abóboda celeste. Seguiu-se uma súbita escuridão e gritos, sustos.
Vermelho, vermelho…
Na rua, os carros sustentavam
a iluminação, suas luzes agora pareciam mais intensas por falta das lâmpadas
dos postes e sinais. A dona de casa olhou pela janela enquanto, com dedos
trêmulos, tentava acender as velas do arranjo natalino. Vermelho, vermelho…
Alguma coisa aquela luz
insistente queria dizer. Era preciso fazer algo, diminuir a sensação de pânico,
de tragédia. Afinal, era noite de Natal. A chuva melhorava, já era possível ver
os carros, meio submersos pela rua/rio que impedia a passagem de todos. Alguns veículos
tinham se apagado, mas a ambulância ainda ostentava as luzes da sirene,
hipnóticas. Vermelho, vermelho…
A mulher tirou os sapatos
elegantes, foi para a cozinha procurar alguma coisa que lhe pareceu essencial
naquele momento. Ansiosa, abriu gavetas e armários, juntou coisas, cortou,
encheu, separou. Na cozinha escura, iluminada por velas, o tempo parecia correr
mais rápido, pulsando no ritmo das luzes fracas que vinham da rua. Vermelho,
vermelho…
Com tudo arrumado, ela ainda
lembrou de tatear embaixo da árvore de Natal, tirar as luzes da tomada, retirar
as caixas dos presentes, juntar tudo num enorme saco de lixo. Lá fora a chuva já
havia parado, mas as águas se agitavam em ondas. A mulher saiu do apartamento,
carregada de sacolas e caixas. Começou a descer as escadas, ruidosamente.
Alguns vizinhos escutaram os ruídos inusitados, abriram as portas, temerosos.
Ao compreenderem o que se passava, foram se unindo a ela. Vermelho, vermelho…
As lâmpadas de emergência
deixavam espectrais as faces de todos. Mas o número de pessoas descendo as
escadas foi aumentando, e os sons tornaram-se risonhos, animados. Lá embaixo,
os porteiros de plantão ajudavam homens, mulheres e crianças, calçando galochas
e capas de chuva, equilibrando sombrinhas e embrulhos, portando lanternas,
toalhas, e grandes caixas pesadas em cima de carrinhos de feira, carrinhos de
supermercado, de bicicletas. Vermelho, vermelho…
As pessoas se espalharam entre
os carros, e batiam nas janelas embaçadas oferecendo as coisas que traziam
em seus recipientes. As ceias de
Natal repartiram-se com aquelas pessoas ilhadas, famintas, cansadas. Criancas
chorosas saíam de dentro dos carros para braços solícitos que lhes davam o que
beber, o que comer. Esquecida, a sirene continuava a girar: Vermelho, vermelho…
As águas se escoavam, já era
possível abrir as portas dos automóveis. O movimento entre os carros se
multiplicou. Pessoas de outros prédios se juntaram aos moradores do primeiro,
todos os carros foram confortados com aquela celebração improvisada. Aqui e ali
ouviu-se o espoucar de uma rolha, os ruídos alegres de brindes, e vozes
desejando benesses. A mulher que havia iniciado o movimento chegou à ambulância,
fechada e quieta, no meio da festa que se formara na rua. Lá dentro,
inquietantes ruídos abafados escapavam. Vermelho, vermelho…
A mulher ficou olhando a luz
da sirene, girando, inútil, como uma estrela ensanguentada. Em suas mãos, as
ofertas que trazia começaram a pesar, e ela sentiu o coração aflito. O relógio marcava
quase meia-noite. Outras pessoas notaram sua imobilidade frente à ambulância
fechada, e agruparam-se ao redor do veículo, cuja luz pulsava revelando seus
rostos preocupados. Vermelho, vermelho…
Ouviu-se um grito agoniado,
quase um uivo. Depois o silêncio reinou por instantes que pareciam congelados.
Finalmente, a porta se abriu, e um enfermeiro, cansado e sujo de sangue
apareceu, Vermelho, vermelho…
Nos braços ele segurava uma
criança que emitia seus primeiros vagidos. Alguém começou a cantar uma velha
canção, baixinho: “Noite feliz”… Logo, todos cantavam. Era meia noite. Trocaram-se presentes, abraços foram
dados, mãos apertadas, faces beijadas.
A sirene, exausta, girava cada vez mais lentamente. Vermelho, vermelho…