Saiu numa revista espanhola, chamada 2384. Não me perguntem de onde tiraram esse nome, que é um número, para uma revista literária. Há de ter algum matemático infiltrado no conselho editorial. Ou esse talvez seja parte do número do telefone da namorada de um deles. Ou o final do cartão de crédito de outro. Ou um conselho cabalístico de uma numeróloga. Só sei que a revista é bacana, com uma produção visual que nem sempre facilita a leitura, e que tem fotos escandalosamente ótimas. E textos muito bons. E que gostam de que autores se autoentrevistem, talvez para evitar as repetições das perguntas de que se queixa o personagem de Amós Oz em Rimas da vida e da morte.
Julguem vocês, se me saí bem.
Publico em português e depois dou o link, para verem no site da revista, já traduzida para o espanhol.
Julguem vocês, se me saí bem.
Publico em português e depois dou o link, para verem no site da revista, já traduzida para o espanhol.
Fazer uma autoentrevista é como fazer um autorretrato?
(Risos)
Acho que não. Num autorretrato o artista tem o espelho como intermediador entre
ele e sua criação, que fica em xeque por conta dessa imagem. Na autoentrevista,
só existe autor e criação… uma combinação que geralmente leva à fantasia e
ficção, a uma imagem sem limites objetivos.
Mas você pode revelar alguma coisa sobre sua
vida e/ou sua obra?
Bem… Um
autor, geralmente, vive através de suas obras. A vida cotidiana do autor é, na
maioria dos casos, muito desinteressante. Sentamos e escrevemos. Ou ficamos de
pé e escrevemos, como Pessoa. Ou, até mesmo, deitamos e escrevemos, como Proust.
Mas, algumas vezes, lemos. Outras vezes paramos de escrever e é como se nos
dissolvêssemos no ar. Pois, mesmo que estejamos mergulhados em atividades, que
nossa vida esteja repleta de aventuras e eventos fantásticos, isso só parece
existir para nós depois que traduzimos tudo em palavras. Somos como náufragos, nadamos
desesperadamente – não apenas para sobrevivermos –, mas para termos a chance de
chegar a algum lugar e podermos criar a mensagem que enviaremos na garrafa.
Essa mensagem, é claro, destina-se a alguém, mas não sabemos a quem. E, também,
é necessariamente incompleta, fruto de nossa experiência de náufrago, – e que náufrago
sabe, com segurança, para onde as ondas o levaram? Portanto, não há muito o que
revelar sobre minha vida. Quanto à minha obra, saberei sempre menos que meu
mais desatento leitor.
Então, por que dar uma entrevista a você mesma?
Creio que
nenhum outro entrevistador seria capaz de me permitir mentir sobre mim ou sobre
meus livros com a mesma sinceridade que o faço.
Mentiras sinceras? Você tirou isso de alguma
música?
Preciso
confessar que sim. Mas essas mentiras a que me refiro são completamente
diferentes das da música, pois não são mentiras sentimentais. O autor, ao se
analisar, crê sinceramente que está dizendo a verdade. No entanto, a verdade
nunca é única e, como não conseguimos ser, ao mesmo, tempo sujeitos e objetos,
nossa verdade confessada é subjetiva e imperfeita, portanto, mentirosa.
Falemos, então, de suas obras. Há quanto tempo
você escreve?
Desde que
aprendi a escrever passei a me relacionar com o mundo através da escrita.
Sempre fui tímida e era mais fácil, para mim, escrever e deixar que os meus
amiguinhos de escola lessem, ao invés de falar e me fazer notar.
O que você escrevia?
Histórias
em quadrinho. Chegava em casa e “reciclava” os papéis usados fazendo
caderninhos onde desenhava pequenas histórias. Era minha brincadeira predileta.
Infelizmente não guardei nenhum desses meus livrinhos de infância, e meus pais
nunca valorizaram esse meu subterfúgio.
Mas você lembra de alguma dessas histórias?
Não. Lembro
apenas de minha primeira crítica negativa. Tinha escrito uma história – da qual
já não lembro o enredo – mas que tinha uma (em minha opinião) maravilhosa descrição do por do sol.
Falava do astro e de como seus raios amarelos terminavam em formosas pontas de
rubi. Meu pai leu a história e me alertou para o fato de que eu não estava
descrevendo o por do sol, mas sim um desenho do por do sol. De repente, perdi
minha ingenuidade infantil e passei a desejar escrever de maneira que pudesse
criar imagens que, embora não tivessem necessariamente que ver com o real,
pudessem ser percebidas como “verdadeiras”. Mas a fantasia continuou a imperar.
Você algum dia quis ser “escritora”?
Em verdade,
nunca quis ser escritora, mas sempre me defini assim, pois escrever era e ainda
é, minha expressão favorita. Gosto de falar e de estar com os amigos e a
família, mas as coisas importantes que consigo comunicar são através de textos.
Todas as minhas frustrações, todos os meus medos, tudo o que me incomoda, as
coisas que me faltam, os desejos insatisfeitos, tudo isso eu resolvo em
narrativas. Olho para o mundo, cada vez mais agressivo e incompreensível, e
procuro um sentido para ele. As palavras são meu consolo e minha salvação.
Através delas posso ser violenta ou suave, posso ousar ou temer, posso
consertar ou destruir.
Esse seu aspecto demiúrgico é sua principal
característica?
Não, muitas
vezes, ao invés de criar mundos, prefiro brincar com a própria literatura. Sou
uma leitora voraz, e algumas histórias que leio ficam germinando dentro de mim,
crescendo e exigindo que eu reaja a elas criando alguma coisa diferente, algum
tipo de resposta. Na verdade, é uma espécie de “leitura por escrito”, pois
sempre que lemos um texto, nos apropriamos dele. A história que leio é
necessariamente individual, pois ela se realiza na minha imaginação, na minha
psiquê. Esse é o milagre da literatura: um bom livro viverá em seus leitores e
sera único a cada leitura. Existem livros que são bem escritos, interessantes,
mas que se esgotam numa única leitura, nunca mais voltamos a eles, nunca mais
eles terão nada a nos dizer. Outros são livros a que voltamos sempre, e com o
mesmo interesse. Mesmo sabendo o final, mesmo conhecendo a história, precisamos
revisitá-la pois tornou-se parte de nossa própria experiência: essas, em minha
opinião, são as grandes obras literárias.
O que você está escrevendo agora?
Estou
terminando um romance sobre a morte de Rimbaud, pois, ao preparar umas aulas
que estava dando sobre ele, li sua biografia e fiquei muito sensibilizada com o
final de seus dias. A vida dele, um grande redemoinho, me parece exigir uma
morte menos cruel, e menos escondida. Pensar que no enterro deste poeta
extraordinário só a mãe e a irmã compareceram me dá dor no coração. Então, escrevo e convido a todos para esse
novo funeral. Acontece que estou escrevendo um romance, e não uma biografia,
daí que posso criar de acordo com minhas interpretações e meus desejos.
Este projeto me parece bem triste. Você é
sempre triste assim?
No fundo,
no fundo, sou bem sombria. Mas tenho um lado solar e alegre que aparece mesmo
no meio de minhas grandes depressões e é o que me “salva” de mim mesma. Meu
romance anterior, O amor acontece, é
muito divertido e com personagens mais doces, menos complicados. Trata-se de
uma história de amor escrita por uma pessoa que não acredita em amor. Ela é
contratada para ir à Veneza e escrever um romance ambientado nesta que é uma
das cidades mais românticas da Europa.
Mas ela só vê os aspectos negativos, a umidade, o cheiro de mofo. Ou,
quando seu humor melhora, ela só vê a Veneza dos livros:, a que foi contada por
outros autores que fizeram da cidade seu cenário. Ela é incapaz de ver o que está acontecendo ao seu redor,
mas acontece que existe alguém que
consegue romper esse seu véu de descrença/fantasia e ensiná-la a se
entregar às surpresas da vida. Só que a autora é teimosa e a história que ela
escreve é um desencontro atrás de outro. Temos, então, um romance dentro de
outro; passar de um plano a outro da narrativa é bastante agradável e provoca
um diálogo entre as diferentes opiniões sobre a possibilidade de se amar no
mundo moderno.
Você falou em romances, mas sua carreira se
iniciou com contos, não?
Os
primeiros livros que publiquei foram de contos. Durante muitos anos escrevi
apenas poesias, mas essas estão guardadas, não sei se algum dia virão a prelo.
Os contos também estavam engavetados, mas, em 2005, tomei coragem e mandei um
para um concurso. Trata-se de “A cicatriz de Olímpia”, que ganhou o I concurso
Osman Lins de Contos. No mesmo ano meu marido pegou os originais de um conjunto
de histórias e os enviou para o SESC:
graças a iniciativa dele ganhei o Prêmio SESC de 2005 com o livro A secretária de Borges. Em seguida
publiquei Linha de sombra, outro
livro de contos. Mas as editoras não gostam de publicar apenas contos e acabei
me aventurando na narrativa mais longa, embora eu prefira trabalhar com a forma
mais sucinta e muito sofisticada do conto. Cortazar nos ensina que no romance
existe espaço para divagações, mas no conto precisamos ser absolutamente
essenciais e surpreendentes como um nocaute. Além dessas obras já mencionadas,
escrevi e publiquei mais três livros infantis (O sapo e a sopa, A cobra e a
corda, Botas e bolas), um livro
de ensaio (O Banquete: uma degustação de
textos e imagens) que acaba de
ser premiado pela Academia Brasileira de Letras, e colaborei em algumas
antologias, revistas e jornais. E ainda ganhei o prêmio Josué Guimarães na 12ª
Jornada de Literatura de Passo Fundo, com os contos “A mãe de Proust”, “A
caixa” e “Manhã”, que só este ano estão sendo publicados pelos organizadores.
Qual o significado dos prêmios na vida do
escritor?
Sem dúvida
os prêmios ajudam na construção de uma carreira, e abrem algumas portas. Claro
que, como em tudo na vida, quanto mais prestigioso um prêmio, mais portas ele
abre. Eu mesma só comecei a ser publicada a partir dos prêmios que recebi, pois
sou tímida e muitas vezes acometida de crises de autoestima. Os prêmios
recebidos funcionam como estímulos e reconhecimento. Reconhecem o nosso esforço
e nos estimulam a produzir e a continuar insistindo numa arte que é solitária e
demorada. Vivemos numa época em que se procura gratificação imediata e o
processo de publicação tradicional é necessariamente demorado. Esta é a razão
pela qual acredito que o futuro vai ver cada vez mais publicações eletrônicas,
embora convivendo com alguns livros tradicionais, que não desaparecerão
completamente. Voltando aos
prêmios, algumas vezes, nos trazem tesouros inestimáveis. Por exemplo, quando
recebi o prêmio Josué Guimarães, recebi também um convite da Universidade de
Santiago de Compostela. As lembranças do local e as amizades que fiz por lá são
motivo de grande alegria. E as coisas que aprendi, são inestimáveis! Com o
prêmio SESC, seguiu-se uma série de viagens pelo interior do meu país, e foi
como se eu tivesse ganhado um certificado de “brasilidade”. Ganhei a minha
própria terra de presente, ganhei raízes mais profundas, uma injeção de seiva.
Escrever em português é mais ou menos difícil?
Que
pergunta tão mal formulada, mas creio que entendo o que você deseja saber.
Algumas vezes lemos sobre o isolamento imposto aos escritores por conta de suas
línguas de origem. Falamos de um Conrad que abdicou de seu idioma natal para
escrever apenas em inglês, por exemplo. Ou discutimos a questão de idiomas como
o galego, que durante anos foi uma língua “clandestina” devido à prepotência
franquista. Ou lamentamos a escassa repercussão de um autor que escreve apenas
em português, imaginando que ele poderia ter muito mais público caso escrevesse
em outra língua. Mas podemos pensar na literatura mundial em termos de uma
orquestra: cada idioma é um instrumento maravilhoso, com sua sonoridade própria
e sua personalidade. Um Scholem Aleichem,
que escreveu em íidiche, um Chinua Achebe, nigeriano cujos livros foram capazes
de “dissolver as paredes da prisão” de Mandela, são autores que nos ensinam que
nosso local de origem e nossa língua materna nos enriquecem e são nosso maior
trunfo, ao invés de nos prejudicar. Lembro da escolha de Dante que, ao escrever
sua Comédia, optou pelo dialeto florentino ao invés do prestígio do Latim e,
com isso, transformou o mundo literário. Escrever, seja no Brasil, na Etiópia
ou na Ucrânia, ou mesmo na França, nos Estados Unidos ou no Japão é um ato de
coragem e um trabalho delicado. E,
em cada idioma, há força e significação para recriar o mundo a cada história.
Para terminar: você se comparou a um náufrago,
disse que os escritores são como náufragos. Isso não seria uma imagem negativa?
Não, um
náufrago é um sobrevivente, uma pessoa normal que, por alguma circunstância, se
vê transformada em herói. É aquele que tem recursos e criatividade para
sobreviver, e é aquele que pode contar sua história. O mar a que me refiro é o
que carregamos dentro de nós, e que nos isola do mundo, embora seja nossa única
possibilidade de nos ligarmos aos outros. Somos como Ulisses, sabemos que
dependemos desse nosso mar para chegar a um bom porto e que nossos naufrágios é
que moldam nossa identidade. Somente no mar somos grandes, porque enfrentamos o
incomensurável. Mas é só quando contamos nossos fracassos que encontramos nosso
sentido e podemos, enfim, vencer a morte. Narramos, logo, somos.
1 comment:
Grande "sacada" a autoentrevista. A escritora Lucia Bettencourt não só abre as portas para perguntas mais inteligentes e interessantes em entrevistas, como mostra a força de seu texto ao se autoentrevistar. O náufrago, o mar a garrafa que encerra mensagens dirigidas ao leitor são belas imagens e prova da capacidade literária da autora.
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