Monday, March 03, 2008

Eça de Queiroz

Estou lendo A cidade e as serras, com minhas queridas alunas. E como estamos nos divertindo! Tinha me esquecido de como Eça é engraçado. Um humor às vezes meio brutal, um pouco grosseiro e caricato, mas extremamente divertido. Quero compartilhar com vocês um parágrafo, falando de viagens, para que vocês também relembrem e riam comigo. Escolho o tema "viagem" já que as memórias traumáticas desta minha última excursão ainda estão vivas em meus pensamentos.

" Ia viajar!...Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente, atrás dum criado, a escadaria desconhecida dum hotel e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida, de onde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com molho coalhado -- e que o copeiro me trouxesse uma garrafa de bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos tectos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquitecturas, verduras, nudezes, sombrias manchas de betume, tristeza das formas imóveis!... E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boa Vista... Gastei seis mil francos. Tinha viajado."

Não é uma maravilha? Caricatural, mas, quantas vezes a gente não tem a impressão de que a viagem é só o desconforto, os dissabores e as confusões de muitas coisas vistas em pouco tempo, confundindo-se em nossas lembranças e fazendo, das mais belas princesas e ninfas, novas demoiselles d'Avignon?
Boa noite, my sweet readers. Não invejem minha solidão -- povoada de angústia. Não se "enjacintem" e desanimem. Riam um pouco comigo, zombem um tiquinho de si mesmos -- é preciso não nos levarmos sempre a sério. Mas sonhem, com o ontem ou com o amanhã, com o agora, o aqui, com o instante que passa.

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