Memórias
de Leitura (1)
Lúcia
Bettencourt
“A menor mulher do mundo” (Clarice
Lispector)
Há um conto de Clarice que tem insistido
em voltar à minha memória, ultimamente. É a história de uma mulher cujo
diminuto tamanho (45 cm) assombra não apenas o explorador que a descobre, no
coração da África, mas também a todos que recebem a notícia de sua existência,
pelo jornal de domingo.
As descrições de Clarice são sumárias.
Além de seu tamanho sabemos que ela é “madura, negra e calada” (a voz do explorador, caçador e homem do mundo,
Michel Pretre esclarece que ela é “escura como um macaco”). Ela aparece no alto
de uma enorme árvore, na companhia de seu “concubino”, como se fosse um fruto.
E está grávida. A “coisa humana menor que existe”, uma mulher.
Cheguei no ponto que tem me incomodado.
Nessa “coisa humana menor que existe”, que é humana, sim, mas diminuta, frágil,
sem voz, alvo de interpretações. Ninguém lhe pergunta nada. Impõem-lhe um nome.
Planejam o que fazer com ela. Conforme suas sensibilidades, uma quer que ela
lhes sirva à mesa; outro quer fazer dela uma boneca. Uma quer sufocá-la de
ternura. Outro corre o risco de matá-la de amor. Uma se apieda, vê tristeza.
Outra vê apenas um animal. Outros veem apenas um bocado a ser saboreado.
E o explorador, caçador e homem do mundo
olha para a “coisa rara”, que já perdeu sua humanidade, e se sente mal com o
riso que não consegue classificar. Pois ela ri porque não está sendo devorada,
e, no entanto, ele sabe que ela está sendo consumida, apropriada, violada,
mesmo que seja em efígie.
A “coisa humana menor que existe”,
transformada em “coisa rara”, passa a fazer sentido porque o que a faz rir,
segundo o explorador, é a certeza de que “é bom possuir, é bom possuir, é bom
possuir”. Aquele riso que poderia significar “ser”, transforma-se em “ter”.
Aquilo que poderia traduzir-se em (bem)-estar no mundo provoca mal-estar. A
menor mulher do mundo, apesar de seu tamanho, não conseguiu escapar das redes
que a aprisionaram e a objetificaram. Ela sucumbe frente a nossos olhos
espantados.
E por que é que isso tem me incomodado?
Porque vejo as semelhanças entre o que andamos discutindo ultimamente, nesta
história de assédio...
As mulheres, ao elevarem suas vozes
contra procedimentos masculinos de violência sexual, produzem discursos que
imediatamente são apropriados, reificados, engessados, isolados e reinterpretados.
Continuamos sendo “a coisa humana menor que existe”. Não importa se escapamos e
conseguimos chegar vivas até aqui. Ainda há muita gente tentando nos
transformar com seu “amor”, sua “ciência”, seus “desejos”. Somos, e ainda
podemos sorrir. Mas, até quando?