Sunday, September 23, 2012

Cronistas de domingo

Gosto desta conversa que estabeleço aqui com dois queridos cronistas de domingo, o Ubaldo e o Veríssimo. Este fala do futuro e de seus artefatos, e eu me lembro da reportagem que assisti e que nos ensina de que são necessários apenas 3 segundos (ou seriam milionésimos de segundo?) para que recebamos uma informação e a arquivemos em nosso cérebro. Daí que nossa vida seja totalmente dependente da memória. Sou aquilo que lembro, e, como vocês podem ver, vou ficando cada vez mais imprecisa e difusa, com essas memórias que já não se fixam com a mesma facilidade. No entanto, o Veríssimo fala de artefatos do futuro que invadem nosso presente. Ou não invadem, se esfumam e desaparecem, como o Concorde, que já pareceu, um dia, ser o futuro da aviação e hoje não passa de uma vaga memória que pertence, ainda, a uns poucos. Elege ele, como o único artefato da ficção científica a estar presente no que ainda chamamos de hoje, ao tal radinho de pulso do Dick Tracy. Como não sou muito ligada a quadrinhos, não me lembro deste detalhe. Dick Tracy, para mim, foi um filme com um homem que já foi o objeto de desejo de muitas mulheres lindas e famosas, e de outras sem beleza e fama, também. Warren Beaty! Quem se lembra dele ainda? Quem ainda pode imaginar o ideal de beleza que ele representou? Sic transit gloria mundi… Peter O'Toole,  Robert Redford, Alan Delon, – a impressão que tenho é de que só os feios escapam. Por alguma misericórdia, os feios se tornam atraentes, alguns até melhoram. Jean Paul Belmondo, por exemplo. Yves Montand, não sou muito boa de nomes, vocês bem sabem. Abro aqui um parênteses para lastimar a beleza do Cauã Reymond, que provavelmente vai desaparecer e deixar as jovens de agora, no futuro, com essa mesma sensação de perda que sinto agora. Volto ao assunto da memória, sob o domínio da qual vivemos: O aparelhinho que o personagem dos quadrinhos levava no pulso seria semelhante a um celular de hoje, que podemos levar amarrado no pulso. Só que estes celulares são um dos principais causadores de nossa perda de memória: como, em seus chips, armazenamos todas as nossas pequenas lembranças e identidades (senhas, números de telefones, endereços dos amigos, datas de aniversário dos parentes, vencimento de contas, compromissos assumidos) cada vez esquecemos mais. Logo, vivemos menos.
Enquanto vivemos, no entanto, usamos nossos idiomas para nos expressarmos, e aí é que entra a crônica do Ubaldo. Como estamos nos esquecendo de tudo, até das regras de nossa própria língua esquecemos e vamos adotando, com uma total falta de critério, tudo o que a "globalização" nos impõe.
Paralimpíadas é a mãe, diz ele.  Desse jeito vamos todos acabar como os vira-latas do Nelson… Mas, como não existe uma versão de complexo de vira-latas nos chips do nosso celular, a gente nem sabe o que é isso, e dá de ombros, sem entender bem o que é que esse tal de cronista quer dizer. E é por isso que, talvez, ao fim de suas crônicas sempre apareça uma identificação por escrito "João Ubaldo Ribeiro é escritor".  Por que será que o mesmo não ocorre com o Veríssimo? Talvez porque esse tenha deixado de ser gente e agora seja apenas uma grife. Volta e meia me aparecem com um texto que dizem ser dele. Textos que eu sei que não são, porque atacam assuntos que ele defende, ou porque são de uma qualidade muito baixa. Isso é o que me diz a memória que ainda guardo de outros tempos. Mas as maquininhas atestam a autoria. O melhor é abanar o rabinho e sorrir latindo como dizia… quem, mesmo? Talvez o São Google saiba!

Friday, September 07, 2012

Possível cenário

Meu amado, hoje eu te chamaria para passear pelas ruas deste Rio enevoado, que misteriosamente esconde suas ilhas e propõe que olhemos para a terra firme. Tomaria tua mão e te levaria a lugares que não costumamos frequentar, à procura de obras de arte semeadas pela cidade, para ver se nossos olhares amorosos as ajudariam a germinar. Com passos despreocupados, quase de dança, relembraríamos o encanto do ballet de ontem à noite. E sorriríamos juntos, no mistério das lembranças compartilhadas. Você e eu, cansados de andar, faríamos uma pausa para tomar uma água de coco e conversar à sombra. Sim, eu sei que você ia preferir uma cerveja gelada, mas o sonho é meu e eu te ofereço algo saudável e natural, cuidando de teu corpo imaterial. Depois, de mãos dadas, quem sabe escolheríamos um museu, onde pudéssemos ver ainda um pouco mais de arte, quem sabe uma livraria, onde você adorava me levar para observar-me, sádico, estorcendo-me nas garras do vício da leitura. Saltando de livro em livro, estonteada, folheando, separando, gemendo a dor de não conseguir ler todos, só encontraria sossego depois que você, com habilidade, me ajudasse a escolher algum livro que acabaria entre nós, na cama, ao fim do dia. Mas a esta hora já teríamos fome, e iríamos almoçar, longe ou perto. A comida seria boa, suave, e nossos olhos satisfeitos, brilhariam de prazer e alegria por estarmos ali juntos, desfrutando a calma do feriado. Iríamos a um cinema, depois. Um filme francês ou português, para usufruir dos festivais. Depois, um café, quentinho, e a nossa interminável conversa seria sobre o filme e a estranheza das imagens ou o intrincado da história, ou a graça das imagens e a força dos personagens. Vamos para casa? Um de nós dois perguntaria, e o outro não conseguiria apagar o brilho malicioso do olhar. Vamos! Você escolheria uma música para preencher a penumbra. Talvez tomássemos um vinho, talvez não. Mas nós nos beijaríamos muitas e muitas vezes. E eu lembraria de uma coisa urgentíssima para te dizer: Te amo, sabia?

Tuesday, September 04, 2012

Ticket to ride

Minha amiga me escreve perguntando sobre um ensaio que eu, supostamente, teria escrito sobre o envelhecimento. Como um dos problemas de envelhecer é o esquecimento, achei que tinha esquecido o que havia escrito e fui procurar, indagar, pesquisar. Não escrevi sobre o assunto, respiro aliviada. Mas resolvo escrever, pois percebo que envelhecer é viver. Só envelhecemos porque temos em mãos o "bilhete de ida", embarcamos na vida e o preço da passagem é esse: o desgaste lento, constante, progressivo.
Já começamos a envelhecer ao nascer? Não sei se é exagero afirmar isso, mas, sem dúvida, já começamos ali com as perdas. Perdemos a união, nos destacamos, e vamos perdendo cabelos, células epiteliais, saliva. Vamos perdendo a graça, perdendo o medo, isso para não mencionar os números incontáveis de chupetas, de sapatos, de touquinhas, de fragmentos que viram coleção de algumas mães: os dentinhos de leite, os cachinhos de cabelo etc.
Perdemos a inocência, perdemos as esperanças, perdemos as estribeiras, perdemos a fé, perdemos amores, mas conservamos algo: nosso bilhete de ida, que seguramos, descuidados e despreocupados a princípio, e que depois agarramos com zelo e atenção. Quando mais se aproxima a estação do desembarque, menos queremos saltar, acostumados que vamos ficando à viagem. Este é um dos males do envelhecer: como só o que conhecemos é a vida, passamos a nos apegar a ela, mesmo quando já não é mais essas coisas.
E, por um capricho do destino, a meio caminho muitos mudam sua posição no veículo. Ao invés de se postarem virados para a frente, e para o caminho que ainda virá, algumas pessoas insistem em se sentar olhando para trás, para o que se distancia em velocidade sempre crescente. Pois o trem da vida está sempre acelerando e os dias, que eram longos na infância, se minimizam e agrupam em semanas e meses cada vez mais fugazes.
Algumas pessoas, tardiamente, resolvem desacelerar o envelhecimento. Acreditam que exista uma idade mental e uma idade corporal, que algumas pessoas podem se conservar jovens toda a vida. E querem ter a aparência de 20 ao chegarem aos 30. E de 30 ao chegarem aos 40. E querem continuar com a aparência de 30 aos 50, 60, 70… E querem continuar pensando como aos 30, mesmo quando já estão na casa dos 80. E pensar não é nada. Querem aparentar, pensar, se vestir e se comportar como alguém de 30 para sempre. E, para isso, se mutilam, se cortam e recortam, malham em academias, esquecem da família, repudiam amigos doentes, adotam filosofias.
Percebo que estou escrevendo estas coisas de fora, como se eu estivesse fora da ciranda. Mas estou lá. Nesta dança macabra, sou aquela caveirinha ali, de peruca rala e óculos de leitura, sorridente, achando que encontrei a fórmula do Shangri-la entre as páginas de um livro.
Meu bilhete de ida já tem o nome da estação de desembarque, mas ainda não posso lê-lo. No meu rosto não consigo ver o que todos os outros já veem, sem muito esforço: a decadência. Como diz meu amigo querido, "O espelho só me ensina a ruína do desejo.
                Sei que é meu este olhar em que eu não mais me vejo."
Eu não vejo, mas os outros sim. Veem aquela que sou agora e que pensa que ainda é de outrora.
Está na hora de saltar deste trem…