Sunday, July 29, 2012

A virada

Estou lendo o Stephen Greenblatt e de repente me vejo roída de inveja. Inveja? Que coisa feia, D. Lúcia, que sentimento horrível, a ser evitado! – dizem as vozes internalizadas de censura. Dou de ombros. Não estou nem aí. Esta inveja que me acomete é legítima, tem toda a razão de ser.  Ela tomou conta de mim quando li o trecho que fala da conquista da Macedônia feita por Emílio (será esse mesmo o nome?) e do Rei Perseu (deste nome estou segura, é mitológico) um descendente de Felipe e de Alexandre. O autor diz que de acordo com a "cleptocracia"(termo que adorei) romana, o vencido Perseu foi mandado junto a fabulosos tesouros, num navio para Roma. Após o desfile, o butin iria para o SPQR – Senatus PopulusQue Romano – mas o general tinha reservado para si mesmo uma parte dos despojos: uma biblioteca! Foi aí que a inveja me atacou. Não do fato do Emílio ter ficado com a biblioteca, mas do prestígio que uma biblioteca tinha naqueles tempos romanos. Tá certo, eles ainda não tinham eletricidade, não conheciam a penicilina nem a anestesia, seus colchões não eram de molas, mas, apesar de tudo, os romanos sabiam valorizar uma biblioteca. Era chique ser dono de uma. E, por muitos anos, Roma foi expandindo suas fronteiras e seu amor aos livros, semeando bibliotecas públicas por onde se estendesse o poderio de seus exércitos. Augusto só ele, mantinha duas bibliotecas públicas, a Otaviana e a Palatina.  Embora tivessem copiado a ideia dos gregos, eles a ampliaram, multiplicaram, e até bolaram cadeiras confortáveis e maneiras práticas de ler e enrolar os manuscritos.
Fico eu aqui com uma inveja boa, sonhando com uma cidade em que, quanto mais poderoso, mais o indivíduo se sentia compelido a ler, a estudar e a discutir o conhecimento. Retorna, Roma! Voltem, livros, a ser o objeto de cobiça, a razão do desejo!… E, já que estou nessa de pedir benesses ao universo e seus átomos, eles bem que podiam dar uma virada repentina e me transformar na Isis Valverde. Linda, simpática e, descubro eu, filósofa! Acho quem nem Epicuro sonhou com uma coisa dessas. E me despeço, invocando, sonene: Ó átomos! Virai-vos! Sacudi-vos! Ponde alguma azeitona em minha empada!…                                                                                                                              

Friday, July 27, 2012

Eu é um outro

Fui ao Rimbaud, ontem à noite, e gostei.
Dividido em 3 partes, mas as três funcionando juntas, ainda comporta um 4º nível, no qual os atores dialogam com a plateia e entre si.
Temos uma vida, bem simplificada, de Arthur, com destaque para alguns poemas e o caso com Verlaine. Um episódio, verídico, que retrata a censura à publicação de Uma temporada no inferno, por represália ao Ênio, que na peça é chamado de Henrique. E um caso passado na França de 2005, o caso Thierry, homossexual abandonado pelo parceiro e que dá guarita a um jovem de origem argelina, que entra em sua casa para roubar 90 euros. E as discussões entre os atores e a plateia, e um inflamado manifesto pela educação. O que costura os episódios? Num dos casos, a censura, noutro o homossexualismo? Seria tão simples assim? Fiquei achando que perdi alguma coisa…
Gostei muito dos atores e em certos momentos achei o jovem Rimbaud muito bom. Ele peca por ser muito simpático, no entanto. Rimbaud provocava, exasperava, obrigava todo o mundo a reagir. O que a gente não entende é quando ele fica quieto. Pois esse comportamento irritante inicial é muito similar aos jovens com algum tipo de distúrbio mental, que insistem, invadem, perturbam nosso cotidiano. Quem já teve um parente ou amigo com um determinado tipo de depressão, dessa que exige um público para sua infelicidade agressiva, sabe o que estou falando. Nem sei se o nome certo é depressão, para este tipo de doença, mas sei que existe e que leva as pessoas a fazerem bobagens, como geralmente se diz. A jovem que engravida, por exemplo, e que é forçada pelos pais a abortar, e depois foge de casa, vai viver numa comunidade hippie, se droga, anda com gente "abaixo de sua classe social", escuta rock, é presa, etc (essa é a descrição de uma personagem secundária do romance Serena, do Ian MacEwan, que estou lendo). Os roqueiros como Jim Morrison seguem este padrão. Viver no limite, afrontar costumes burgueses, experimentar outros níveis de realidade. E insuflar lendas. Alguns acreditam que Morrison não morreu e desapareceu numa vida misteriosa. Claro que, depois de dez anos de sumiço, o Morrison, para fazer juz à lenda, deveria ter voltado para morrer verdadeiramente (de câncer ou de AIDS) e provocar pena e lágrimas e muitos mea-culpas. Pelos vistos, o sonho acabou mesmo em 81…
Volto à peça. Minha amiga me perguntou: Por que é que Rimbaud está na moda? Será que é uma questão de moda? Ou atemporalidade? Personificar os tormentos e as incompreensões, a arrogância da juventude com sua vida até os 19 e depois personificar o arrependimento, a aceitação, a conformidade da vida madura? Ou, no enigmático silêncio, salvar-nos a todos da mediocridade?
Sei lá. O que me atrai nele é a injustiça divina. A punição e o aniquilamento implacável, seu sofrimento de oferenda, inimaginável.
Bem, volto ao trabalho.

Tuesday, July 24, 2012

Adiamentos

A peça do Rimbaud ficou para quinta-feira. Os filmes vão ter que esperar. Aulas de piano? Estou de férias, mas ainda preciso estudar. Os planos de viagem? Encaminhados. No fim de semana retomo. O romance? Volto ao Rimbaud, cheia de encantamento.
Poesia? Sempre, mas só curtindo, de longe. Prosa? Não, estonteada de sono, pois as preocupações têm me mantido acordada. Novela? Eu não. Romance do Ian MacEwan, e uma pilha de outros à espera.
Tempo? Escasso. Aulas? A preparar. E o mar lá fora? Lindo, e me chama, mas preciso resistir. Facebook? uma só vez por dia, rapidinho. Música? Não, uma tacinha de vinho Malbec, delicioso. Coisas para fazer? Um milhão, mas esqueci.
Sim, um autorretrato singelo e sincero.

Sunday, July 22, 2012

Déficit de atenção

Será que depois de uma certa idade a gente pode desenvolver déficit de atenção? Ou isso é coisa que só criança de colégio tem, para justificar as notas baixas e o comportamento ruim?
Fui criada com rigor vitoriano, o que significa dizer que eu existia para ser corrigida. E como eu era imperfeita! Entre castigos e tabefes para meu aperfeiçoamento, me lembro de ter ido uma vez ao parque da esquina, andar de patins, onde, por absoluta falta de prática, ou pela falta de manutenção do espaço que exibia rachaduras no cimento, levei um tombo que me fez expelir todo o ar dos pulmões. Horrível, pois a gente não consegue enchê-los de volta, parece um afogamento a seco. O pior é que, em vez de chorar assustada e procurar o consolo dos "mais velhos", como se dizia na época, ou dos adultos, como se diz hoje, tratei foi de esconder o tombo e o pavor, para não ser castigada e nunca mais voltar ao parque, onde já era raro ir mesmo sem acidentes.
Para mim a vida era "estudar"; infelizmente, não era muito afeita a essa atividade. Me diziam que fosse estudar e, como não eram obedecidos, me levavam para meu quarto e me deixavam trancada até que eu fizesse a lição de matemática. Algumas vezes, chorava e batia na porta, implorando por liberdade. Outras, já mais esperta, ficava lá dentro brincando com lápis, apontadores e borrachas. Fazia ponta nos lápis e com as aparas de madeira, fazia um guardarroupa (é assim, agora?) de sainhas de boneca. Com a borracha, que era uma rodinha com um pincel, modelo hoje desaparecido,  "apagava" a mesa, que era a casa das bonecas. A ação gerava uma série de filamentos, a "sujeira", que devia ser varrida, cuidadosamente, para que o baile pudesse começar. Depois de tudo pronto, as sainhas, que agora faziam as vezes de princesas completas, rodopiavam no baile, em volta do príncipe, que podia ser o apontador, ou o próprio lápis, reduzido a um pequeno cotoco, não muito maior que as tais saias. Depois de algumas horas, vinham me libertar, e pasmavam por ver que eu ainda não tinha feito nem sequer uma conta. É um verdadeiro milagre que eu tenha aprendido as 4 operações. Ninguém me disse que eu tinha déficit de atenção, eu era apenas preguiçosa, nos melhores dias, burra nos piores.
Hoje, porém, acho que estou ficando com o tal déficit. Ou, como eu prefiro chamar, com síndrome de borboleta. Me rodeio com tantos projetos atraentes que depois não sei qual escolher. Tenho dois, não, três romances começados. Ou melhor, três romances e uma autobiografia cômica. Tenho dois livros infantis também começados. Um curso em andamento. Outro curso prestes a começar, sobre Jorge Amado, de quem nem sou muito íntima. Tenho três palestras para preparar, um monte, não uma montanha de livros para ler, peças de teatro para assistir, aulas de piano, uma família, cinema, TV, concertos, ballets, óperas, jornais… E o meu dia continua com 24 horas, apenas. E o blog, e o facebook, e os joguinhos de paciência, e o imeio, e o celular, e a família … Apenas 24 horas. E as viagens, e Angra, e o mar…A semana só tem 7 dias e os meses, em sua maioria, 31 dias. Tudo isso, e ainda todos os sonhos do mundo… OK. Vou tentar trabalhar. Mas o mar está tão azul, e hoje é domingo, dia de família, e preciso de acertar os detalhes de minha viagem a Poitiers, e tem uma peça sobre Rimbaud que quero assistir, mas, se for à peça, não vou poder ir ao…
Tchau! Fui!

Friday, July 20, 2012

R$ 212,00

Fiquei chocada.
Eu não sabia, e não queria saber.
Todas as horas passadas aqui em frente ao computador, todas as tentativas e erros, horas e horas de minha vida, pensamentos e divagações sem fim, fotos, sonhos, viagens… Minha vida, enfim, foi avaliada em meros R$ 212,00.
Será que tudo tem preço?
Ou peso? Quem se lembra do filme 21 gramas, falando do peso da alma?
Quem se lembra de quantificar a vida?
Pois respondo com o poeta:
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." (A.C.)

E, por isso mesmo, não vou deixar que um Esteves sem metafísica venha atrapalhar o meu sonho.
Eu o saúdo, caio na real por um instante, mas depois me lembro que não importa. O Esteves nem vai saber que sobrevive graças a um verso qualquer, citado num blog que ele avaliou como uma ninharia.
Sorrio, com a superioridade do artista desconhecido, mas sonhador.

ABL

Estive lá hoje, na premiação do querido Alberto Mussa pelo seu O senhor do lado esquerdo. Feliz por ele, feliz pela Elaine, feliz por estar entre amigos. O prêmio de poesia foi para o Manuel de Barros. O de roteiro foi para o Marcelo Rubens Paiva, cujo Feliz Ano Velho até hoje me comove. Mas ele ganhou foi por ter roteirizado Malu de bicicleta, seu próprio romance. O de tradução foi para um colega da UFRJ, o Rubens Figueiredo. O de ensaio foi para um autor do Maranhão, falando sobre a Atenas brasileira. Pelo parecer, descubro que Gonçalves Dias era um dos atenienses. Vejam que continuo resistindo à tentação de falar de poesia, mas é um esforço, visto que o prêmio da literatura infantil foi para Marisa Lajolo com seu livro sobre a vida de … Gonçalves Dias! Vejo que o poeta, que chamei de demodé, está mais na moda do que nunca. Fico feliz por mais essa razão. Teve um prêmio para um historiador, também. E discursos, muitos discursos. Ana Maria Machado abriu a sessão lendo o discurso de Machado de Assis por ocasião da fundação da Academia. Pudera! Estavam comemorando os 119 anos de sua fundação. Depois um dos acadêmicos contou em detalhes a história da academia. Fundiu Machado com Nabuco e falou em Machuco. Outro falou da obra de Dalton Trevisan, pois este recebeu o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. Os acadêmicos liam os pareceres para cada categoria e depois entregavam o diploma aos vencedores calados e emocionados autores.  A sobremesa, porém, foi o discurso enviado pelo Dalton Trevisan, em agradecimento. Delicioso, ele retirou as personagens dos romances do "bruxo do Cosme Velho", levando-as todas para a fria Curitiba e transformando-as em vampirescas criações, com uma mistura de humor e amor que nos encantou a todos. Os elogios se multiplicaram e foram sendo ecoados pelos salões e ruas, até chegar ao Vilarino, onde parei para fazer um brinde ao Mussa, que ele merece.

Thursday, July 19, 2012

Veríssimo, hoje.

Será que está havendo uma conspiração universal para impedir que eu pare de falar de poesia? Muito mau gosto do Universo, mas sou uma peixinha gulosa, mordo qualquer isca que me atirem…
A crônica do Veríssimo está primorosa, mas remete ao poema de Dylan Thomas, e também ao tema de meus pensamentos da noite passada: a morte. No entanto, antes de falar nisso, como fui assistir à palestra do Ubaldo na terça, mordi outra isca, a da digressão. Sendo assim, aproveito para me desviar do caminho e passar, antes de tudo, na casa de uma amiga gaúcha, na Gávea. Fomos almoçar por lá, comemorando seu aniversário. E, para combinar, falamos de Veríssimo, o pai deste que aí está, e de seus romances maravilhosos, de seus personagens encantadores. Confesso aqui que fui apaixonada por Rodrigo Cambará, não o capitão Rodrigo, mas o Rodrigo urbano e imperfeito. Mas isso foi há tanto tempo que já não sei bem porque eu preferia este ao heróico e pirotécnico capitão. Vou me conter e não embarcarei na palavra pirotécnico, que me levaria ao Zacarias e às leituras feitas na universidade. Continuo no Veríssimo, que li menina. Naqueles tempos a gente graduava de Monteiro Lobato e ia diretamente para Alencares, Machados, Veríssimos e o que mais houvesse na biblioteca dos nossos pais.  Era essa a conversa do grupinho de convivas, sobre leituras juvenis. Fico tentando me lembrar das obras e autores que me chamaram mais a atenção. A cada hora lembro de um, esqueço outro.  Sei que li muitos poemas, por causa de minha tia, que se dizia "declamadora". E ela me obrigava a decorar os poemas e a recitá-los no próximo domingo, mas nunca cheguei a alcançar a perfeição que ela almejava. Os poemas eram aquilo que os americanos chamam de "cute" e deveriam ser ditos – ou declamados – com trejeitos que hoje reconheço nas minhas idas a alguns eventos no NE, onde as pessoas ainda leem e recitam poemas. Essa nega Fulô, do Jorge de Lima, por exemplo, precisa ser interpretado com gestos amplos, paradas, suspiros e gemidos. Claro que minha timidez de filha única e de menina sem auto-estima me fazia mastigar as palavras, engolir frases e isso acarretava reprimendas e correções que contribuíam ainda mais para minha insegurança. Não foram poucos os poemas que terminei com lágrimas verdadeiras escorrendo pelo rosto. Resultado: nunca mais decorei um poema. Sou incapaz. Sei um ou outro verso: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada", por exemplo. Por isso recorro ao copiar e colar, milagre que o São Google , por enquanto, ainda não se nega a fazer. Antes eu ia até os livros, copiava só os versos que me interessavam, preguiçosa. Agora posto aqui o poema todo do Dylan, Do not go gentle into that good night.

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on that sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light. 
Tímida, não ousei criar um caso ontem à noite, quando a luz se apagou. Nem sequer permiti que minhas lágrimas rolassem no escuro. Soltei um lamento, uma frase no Facebook. Depois fechei os 
olhos e tentei dormir, ainda vestida.

Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.



Não lembrei do Dylan Thomas, mas sobrevivi à loucura e à pequena amostra da morte oferecida pela falta de luz no meu prédio.  De olhos fechados, como se o escuro fosse minha escolha, embarquei no barco ébrio de enredos possíveis, de narrativas passadas, e, quando vi, estava acordando hoje de manhã neste dia cinzento, e com um interlocutor, Veríssimo, que me emocionou. Também encontrei mensagens de amigos que leram meu lamento no Facebook e me consolaram. E agora tenho aula de piano, o que demonstra minhas acentuadas tendências sadomasoquistas… Mas um dia tocarei o Concerto de Tchailowsky sem muitos erros, e me sentirei realizada. 
Apago o que acabo de escrever sobre epitáfios e quetais. Hoje é dia de festa. 19 de julho de 1970 - 19 de julho de 2012… Though lovers be lost love shall not. E eu saúdo o amor, não no pretérito, sempre presente. Plus, encore! À vida! Death shall have no dominion.

Tuesday, July 17, 2012

Falha de leitura.

Não ia mais falar de poesia, mas eis que a Celina me telefona ontem. Sua antologia ainda está ao meu lado e é natural que, depois de trabalhos e assuntos vários, a conversa se encaminhe para comentários sobre a obra. Ela cita os versos iniciais do soneto do Secchin, que a assombram:

Revejo a luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos que eu mandei para o endereço errado.

Qual de nós não mandou ao menos um sonho para o endereço errado? Ou não recebeu um sonho que não lhe pertencia de direito? Mas se à Celina chamou atenção o "endereço errado", fiquei encantada com "a luz gelada de manhãs perdidas". Essa inusitada luz, que rege todo o soneto e que desapropria o lugar dos sonhos, não mais reclusos no sono, tornando-os conscientes, voluntários e por isso mesmo mais dolorosos, é antecedida pelo verbo rever, no presente. Sísifo, suspeito. E julgo ter acertado quando, ao final, um outro verso vem surpreender-nos: "rolando sem parar pela memória acima."

Adoro o poema, mas a estudante de literatura cede lugar à amiga, que fica refletindo em coisas paralelas, tais como a multiplicidade destas sombras à beira do quarto: fantasmas ferozes, com desdenhosas garras de rapina. Imagino meu amigo, tão contido, tão discreto, homem do silêncio farto,  em confronto com esse poeta, todo sentimento, incapaz de parar de amar, colocando sonhos em garrafas que ele atira pelos bordos de seu barco sóbrio e que não se dissipam nem flutuam para longe, encravadas no lodo seco que paralisa sua viagem. Um soneto de amores passados, de amores infelizes que se repetem mesmo que só memória acima. Na luz gelada do espelho, sua lição é amarga, embora o olhar ainda seja seu ele não pode se rever. Só encontra a luz gelada de manhãs perdidas.

Quem fala aqui? A leitora, falhada, de poesia? A amiga? Sem dúvida a amiga, que se preocupa ao notar os signos de dor, sofrimento e por sentir, em sintonia, a ferocidade das emoções. À leitora treinada não caberia preocupar-se com os motivos do poema, pois ela saberia que o poeta é um fingidor, e que o leitor só poderá conhecer a sua própria dor.

Celina me desqualifica, diz que não mandei sonhos para o endereço errado. Mas talvez tudo tenha sido obra do acaso. Talvez eu tenha jogado minha garrafinha sem endereçá-la, e ela tenha alcançado a praia correta, de águas amnióticas, que me tenha ajudado a renascer. Mas nem por isso deixo de ter fantasmas que me venham revisitar. Na luz gelada das manhãs, tudo se materializa.

Eu disse, eu avisei. Sou péssima leitora de poesia. Mas amo os poemas, pequenas jóias que rebrilham nos cabelos da Sereia Literatura.

Sunday, July 15, 2012

De novo?

Poesia, outra vez?
Mas como não copiar algo do adorável Antônio Gonçalves Dias, autor de poemas inesquecíveis como Leito de folhas verdes, Y-Juca Pirama, Ainda uma vez adeus! e este lindinho, que se pretende ingênuo mas que é todo espertinho, confessando seu amor apesar de não saber o que é amar?


Se te Amo, Não Sei!


Amar! se te amo, não sei.
Oiço aí pronunciar
Essa palavra de modo
Que não sei o que é amar.

Se amar é sonhar contigo,
Se é pensar, velando, em ti,
Se é ter-te n'alma presente
Todo esquecido de mim!

Se é cobiçar-te, querer-te
Como uma bênção dos céus
A ti somente na terra
Como lá em cima a Deus;

Se é dar a vida, o futuro,
Para dizer que te amei:
Amo; porém se te amo
Como oiço dizer, não sei.

Sei que se um gênio bom me aparecesse
E tronos, glórias, ilusões floridas,
E os tesouros da terra me oferecesse
E as riquezas que o mar tem escondidas;

E do outro lado a ti somente, e o gozo
Efêmero e precário e após a morte;
E me dissesse: "Escolhe" oh! jubiloso,
Exclamara, senhor da minha sorte!

"Que tesouro na terra há i que a iguale?
Quero-a mil vezes, de joelhos sim!
Bendita a vida que tal preço vale,
E que merece de acabar assim!"

E aqui fico eu, me perguntando: O que é amar nos dias de hoje? Nos de ontem era essa coisa delicada, essa ansiedade, essa chama alimentada no voraz segredo, provocando medo aos Casimiros ou renúncia aos Antônios. E hoje? Continua chama, mas uma chama controlada, como a do pequeno maçarico que prepara o creme brulé. Pode até queimar, mas todos já manipulam com tanta destreza que é difícil ver-se alguém sofrendo.
Amor, passageiro, fugaz, sem importância? Amor, eterno, profundo, primordial? Será que ainda se sonha, se pensa, se cobiça e se deseja morrer de amor? Ou talvez a satisfação imediata do desejo impeça que o fogo que arde sem se ver vire um incêndio de grandes proporções.
Será que alguém ainda passa suas horas e seus dias nublados esperando que chegue uma mensagem no e-mail, um recado na secretária eletrônica, um torpedo no celular que lhe faça ver o dia sem nuvens e a noite de luar? Ou apenas guardamos meia hora para que o amado entre pela porta dizendo que nos adora e mudando nossas vidas?
Seja como for, se tiver um pouquinho de poesia, o amor valerá a pena! E bendiremos a vida e pagaremos o preço, pois só se quer amar, se quer amar, se quer amar…

Thursday, July 12, 2012

Desejo - Gonçalves Dias

Continuando a veia poética,  lembro de Drummond
O amor bate na porta
O amor bate na aorta…
pois a coletânea organizada pela querida Celina Portocarrero está aqui ao meu lado e me chama, insistente.
Leio poetas de hoje, leio poetas de ontem, decido por Gonçalves Dias, demodé, mas bem amado.

Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;

Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!

Vejam só como o desejo de ontem se apresentava descorporificado. "Um anjo … uma mulher… uma obra tua". A mulher figura entre duas abstrações, se evola em essência, vira uma alma. Fala-se em voo, na amplidão dos ares, em céus. Do desejo do título, sem dúvida, sobra o silêncio. Nele só se pode falar fora do corpo do poema. Mas não sigo adiante. Analisar poemas, com minha falta de tato e elegância, equivale a matar a Mosca azul conforme me ensina Machado:

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.

Calo-me para continuar a desfrutar as emoções. Modernamente, vejo como o amor carnal se apresenta sem véus, direto.  É possível experimentar em nossa própria boca o mastigar de corpos, sentir os cheiros pungentes, o calor de uma neve que, ardente no século XVII, agora umedece as calcinhas de ontem. Viro páginas e me delicio com os ecos de Casimiro. Admiro! Depois me despeço, citando:
Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo.
( E cito assim, sem aspas, abraçando o verso com meu texto só para mostrar que desejaria tê-lo escrito).
O remorso do plágio me faz voltar atrás e proclamar que o verso é do poeta Antônio Carlos Secchin.

Monday, July 09, 2012

De Ítaca e outros sofrimentos


ÍTACA 
Konstantinos Kaváfis
(Trad. 
José Paulo Paes)

Se partires um dia rumo a Ítaca, 
faz votos de que o caminho seja longo, 
repleto de aventuras, repleto de saber. 
Nem Lestrigões nem os Ciclopes 
nem o colérico Posídon te intimidem; 
eles no teu caminho jamais encontrarás 
se altivo for teu pensamento, se sutil 
emoção teu corpo e teu espírito tocar. 
Nem Lestrigões nem os Ciclopes 
nem o bravio Posídon hás de ver, 
se tu mesmo não os levares dentro da alma, 
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo. 
Numerosas serão as manhãs de verão 
nas quais, com que prazer, com que alegria, 
tu hás de entrar pela primeira vez um porto 
para correr as lojas dos fenícios 
e belas mercancias adquirir: 
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, 
e perfumes sensuais de toda a espécie, 
quanto houver de aromas deleitosos. 
A muitas cidades do Egito peregrina 
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente. 
Estás predestinado a ali chegar. 
Mas não apresses a viagem nunca. 
Melhor muitos anos levares de jornada 
e fundeares na ilha velho enfim, 
rico de quanto ganhaste no caminho, 
sem esperar riquezas que Ítaca te desse. 
Uma bela viagem deu-te Ítaca. 
Sem ela não te ponhas a caminho. 
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. 
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, 
e agora sabes o que significam Ítacas.

Pronto! Esta Flip despertou minha veia poética, que andava calada, batendo devagar, "sem alarme", como no poema Áporo de Drummond. Ontem foi Adormecida, do Castro Alves. Hoje é a vez de Kaváfis e de sua Ítaca, um poema maduro, pois só mesmo a vivência nos permite aconselhar a não apressar a viagem.
"Uma bela viagem deu-te Ítaca", diz ele. Olhe a viagem, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras e de saber… Que diferença da fala da jovem Luísa, que confessou que, ao ler Os sofrimentos do jovem Werther (de Goethe), perdeu o interesse logo na página 20. "Ele ia se suicidar, por que demorou tanto"? – perguntou, perplexa. Ora, senhora dona romancista, o final, Ítaca, é sempre pobre. É a jornada para Ítaca que interessa, é a jornada que é a narrativa de que precisamos. E, se a história é a história de um morto, esta é sua única forma de vida…
Depois de ter falado numa das duas sessões em que tive a palavra, uma pessoa da plateia levantou-se e veio me dizer: "Adorei o que você disse. Não sei bem o que foi, mas senti que me tocava". Um outro poema me vem à mente:
"Ora, direis, ouvir estrelas!  
[…]Que sentido 
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."
 

Falta-lhe amor, senhora! Ame que me entenderá. Pois o poeta revela:
"Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor".

Amar o quê? Amar a quem? Meras Ítacas, razões para sofrer. Mas é assim, de sofrimento em sofimento, nesta viagem amorosa que nos vem o entendimento… Ou talvez apenas as ilusões…

Sunday, July 08, 2012

Adormecida


Uma noite, eu me lembro... Ela dormia 
Numa rede encostada molemente... 
Quase aberto o roupão... solto o cabelo 
E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste 
Exalavam as silvas da campina... 
E ao longe, num pedaço do horizonte, 
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados, 
Indiscretos entravam pela sala, 
E de leve oscilando ao tom das auras, 
Iam na face trêmulos — beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago 
Mesmo em sonhos a moça estremecia... 
Quando ela serenava... a flor beijava-a... 
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante 
Brincavam duas cândidas crianças... 
A brisa, que agitava as folhas verdes, 
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se... 
Mas quando a via despeitada a meio, 
P'ra não zangá-la... sacudia alegre 
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia 
Naquela noite lânguida e sentida: 
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas! 
"Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."

Recém chegada de Paraty e da Flip, não é de estranhar que venha com a cabeça cheia de poesia. Da poesia de Drummond e de retalhos de poesias que a gente vai esquecendo pelo caminho. Tropeço aqui e encontro a lua irônica do poema de sete faces, claudico ali e as mercadorias, melancolias me espreitam e zombam de meu titubear. Entre as pedras do caminho, reconheço versos de João, na luz balão de cada manhã entretecida. No barco ancorado me julgo transportada ao Recife e sorrio nesta Pasárgada que existe para mim e seduziu Manuel.  E mesmo o Shakespeare que se insinuou entre as palestras, metamorfoseia-se nos Tupis or not Tupis que vendem seus artefatos pelas ruas. 
Poetas amados, alguns quase esquecidos, seus poemas me aguardavam nas estantes e agora me surpreendem em sites de pesquisa. Armo minha rede, do jeito que posso, e adormeço minha sede infinita. Bicho da terra, pequeníssimo, entre criaturas me resigno a amar minha falta, minha secura, na cidade que me ilude, e me deslumbra.
Hesito. O corpo veio, a mente se recusa a chegar. Entre o ontem e o hoje a saudade se insinua, se instala e me faz perder o compasso e a ordem gramatical. Ainda há Rimbaud, talvez seja possível resgatar seu barco e partir. Ou deixar-me desfazer no mangue seco, sonhando com as ondas e com as flores do mal, mas… ninguém me chama de Baudelaire, ninguém me quer! E, no entanto, eu me deixo tentar numa rima, numa dissolução. É quase que um delírio, e meu vai e vem me embala e, finalmente, minhas retinas fatigadas desistem de ver o que lá não está.
Adormeço tarde. O sonho chegou primeiro.

Tuesday, July 03, 2012

Felicidade, clandestina?

Depois da postagem anterior, meu tempo se acelerou de tal forma que não tive tempo de passar por aqui. Perdi a chance de falar de tantas coisas que me sucederam e agora a memória fraca e o tempo exíguo deixarão para trás esses assuntos. Vou direto ao ponto, a coluna do Jabor, que fala em felicidade.
Fe-li-ci-da-de, seria assim que os personagens de O amor acontece se refeririam, grifando a palavra, um pouquinho irônicos, dando a entender que sabem que felicidade é utopia, mas nem por isso deixando de, no fundo, acreditar que ela existe e pode ser alcançada. Em meu grupo de leitura falo muito sobre isso, a tal da felicidade, "mercadoria" cuja posse nos torna especiais. O problema é essa questão de ter felicidade, de acreditar que alguém possa nos dar felicidade, ou que possamos comprar a felicidade "escondida" num vestido, numa caixa de bombons, no carro mais possante, na motocicleta brilhante…
Felicidade assim é prazer e o prazer é a satisfação de um desejo. Acontece que, para que exista desejo, é preciso que haja "falta". Não se deseja o que já se tem. Isso está em Lacan, mas antes de estar em Lacan, já estava em Platão. E nos tornamos, assim, insaciáveis. Queixamo-nos dos outros que não nos fazem felizes, mas é impossível que o Outro nos faça felizes, pois somos Hidras famintas, seres de mil bocas desejantes, quando uma é saciada 999 outras clamam por alimento.
Felicidade é processo, então? Uma dinâmica? A máquina que nos faz seguir vivendo e desejando? Aquela cenourinha inalcançada atrás da qual corremos até chegarmos ao ponto de repouso?
O que é a tal da felicidade? Hoje em dia, quando perdemos ideais e a capacidade de renunciar, a felicidade já não chega nem mais à categoria de prazer, perdendo-se no processo quase instantâneo de "gratificação". Descalçamos os sapatos na festa: Ah, que felicidade! Damos uma dentada no chocolate: quanta felicidade! Encontramos lugar para sentar no ônibus: uma verdadeira felicidade! E por aí vai.
Clandestina nos pequenos acontecimentos que atomizam nossa vida, a felicidade se reparte, humilde. Mas nos discursos, ela se apresenta como Felicidade, e, exigente, se diz impossível de alcançar. Escraviza, se coloca sempre num outro patamar e diz aos magros que, se tivessem um corpo mais voluptuoso, seriam felizes. Diz aos gordos que, se fossem mais magros, seriam felizes. Aos de cabelos lisos, sussurra que os cachos lhe dariam felicidade.
Mudo de assunto e penso naquele jogador italiano/ganês, que fez o gol da Itália e tirou a camisa, mostrando um belo corpo. Ele obviamente já não estava feliz naquele momento, pois nunca poderá ser feliz. E, no entanto, naquele momento era o herói de uma nação, exibia um corpo bonito e saudável, estava jogando na seleção, o que significa que faz parte dos melhores jogadores da Itália, tem audácia bastante para exibir um ridículo corte de cabelo. Tudo para ser feliz? Quanto mais se tem, mais difícil fica alcançar essa felicidade…
Melhor aproveitar o dia e dar uma caminhada pela praia. Talvez, no inesperado espetáculo de golfinhos alegres a gente descubra uma felicidade clandestina, mergulhando e rindo de nossas caras angustiadas,
saindo da água, como Vênus, correndo para outro lugar, longe, e nos acenando para segui-la…